Pessoal,
Muitas pessoas tem me perguntado sobre o voo em
Quixadá. Apesar da minha curtíssima estada lá, acredito que eu tenha algo a
contribuir para aqueles que tenham a intenção de voar em Quixadá algum dia. O
que eu vou relatar é fruto apenas da minha experiência, que é pessoal e pode
não refletir a opinião de outros pilotos.
Voar em Quixadá nunca foi uma prioridade para
mim, tampouco um sonho, mas na busca por me aprimorar no esporte, a opção de
voar lá acabou surgindo naturalmente. Eu vinha ao longo dos últimos 12 meses
buscando me aprimorar no voo de Cross Country, e sempre que possível,
procurando voar no interior e em condições mais fortes aqui no Rio de Janeiro e
região Sudeste de uma forma geral. A minha meta para 2012 era voar em Jaraguá,
e se eu me sentisse confortável com a condição lá, tentaria fazer meu primeiro
voo de 3 dígitos. A minha preparação para a temporada em Jaraguá durou uns 10
meses, e neste período, foquei muito na técnica, preparo físico e mental.
Passei 18 dias em Jaraguá, e neste período, fiz voos memoráveis que achei que
nunca seria capaz de fazer, conseguindo dois voos de mais de 100km OLC. No meu
retorno de Jaraguá, surgiu uma semente de desejo sobre o voo em Quixadá.
Perguntei a mim mesmo se eu teria capacidade técnica de voar lá, mas no mesmo
momento que me fazia esta pergunta, eu me lembrava dos vídeos aterrorizantes
das decolagens em Quixadá que já tinha visto, e logo descartava a ideia. Mas
essa semente de ideia começou a florescer, e depois que retornei, comecei a
estudar os voos de Quixadá no XCBrasil.org e analisar vídeos das decolagens de
uma forma um pouco mais criteriosa. O fato que eu tinha mais 11 dias de férias
em 2012, e que já havia programado para tirar em novembro. Foi aí que a opção
de Quixadá começou a se concretizar.
Nas diversas análises dos voos de Quixadá, me
deparei com o LOG postado por um piloto de Sampaio, o Fábio Stallivieri, com
quem eu já tinha voado anteriormente em Sampaio Correia e em Jaraguá. Esta era
a oportunidade de obter os relatos de uma pessoa conhecida, e não ficar
restrito apenas a vídeos e track-logs de pilotos que eu não conhecia
pessoalmente. Fiz contato com o Fábio, e trocamos uma ideia sobre a condição
geral de voo lá, e tentamos no final das contas quantificar o quão forte era a
condição lá tomando como referência um lugar conhecido. O número que chegamos
era de que o voo em Quixadá seria em torno de 50% mais forte e turbulento que o
voo em Jaraguá. Notem que este número se baseou no nosso papo e principalmente
na vivência do Fábio. A partir de então, fiquei me perguntando se eu tinha
condições técnicas de lidar com uma condição 50% mais forte e demandante do que
a que eu tinha vivenciado nos meus 18 dias em Jaraguá.
As minhas férias se aproximavam, e eu começava
a me perguntar aonde eu voaria. E a ideia de Quixadá já não era mais um
semente, mas um broto que insistia em florescer, apesar do medo e aflição que
eu sentia quando eu me lembrava das decolagens aterrorizantes. É isto mesmo, eu
tinha muito medo..rsrs.. Foi aí que aproximadamente uns 10 dias antes das
minhas férias, recebi um telefonema do Fábio me perguntando se eu ainda tinha a
intenção de voar lá, pois ele queria retornar a Quixadá e tinha a
disponibilidade para um período coincidente com as minhas férias. Neste
momento, me senti invadido por um misto de medo, euforia, ansiedade, aflição...
Parecia que havia mil borboletas voando no meu estômago. Interrompi a ligação,
conversei com a minha noiva sobre este desafio, e retornei a ligação para o Fábio
aceitando o convite. Neste momento, fui invadido por toda aquela sensação de
forma triplicada..rsrs.. Neste momento, percebi que tinha tomado uma decisão
que afetaria a minha vida como piloto, e decidi que a minha prioridade máxima
nesta viagem seria a de retornar para a minha família da mesma forma como eu os
estava deixando – em segurança. E logo em seguida, decidi que faria valer a
minha opção de não decolar caso eu não me sentisse à vontade.
Bom, tinha decidido ir para Quixadá, e minhas
férias ainda não tinham começado, mas eu não conseguia mais focar em outra
coisa a não ser no voo em Quixadá. Dei-me conta de que eu não tinha feito uma
preparação como a que eu tinha feito em Jaraguá, e tinha que correr contra o
tempo. Imediatamente, me apressei para alugar carro, reservar hotel, contratar
resgate, arrumar equipamento extra de comunicação, checar rádio, SPOT,
alimentação, dobra de reserva, reserva extra, etc... Em alguns dias tinha
preparado tudo que uma viagem a Quixadá exige. Então não tinha mais nada para
fazer a não ser esperar...
Enquanto esperava o dia de partir, investiguei
todas as rotas possíveis, anotei coordenadas dos Way Points, verifiquei as
rotas por terra, quais seriam as regiões de roubadas, tudo isso com a ajuda da
internet. O preparo físico é um aspecto fundamental para se voar em Quixadá, já
que as rotas passam por regiões, que apesar de existirem estradas de terra, são
totalmente inabitadas por dezenas de quilômetros. Então, se você quer voar lá,
prepare-se para caminhar bastante com seu equipamento nas costas e em condições
extremas de calor e umidade muito baixa. Existe também a particularidade das
juremas, que é um arbusto de aproximadamente 1,5m sem folhas e com muito
espinho onde você pode pousar em caso de não haver lugar melhor, mas com
certeza você vai se arranhar, vai ter muitas dificuldades de sair do meio dos
arbustos, e pode danificar seu equipamento. Além do preparo físico para sair de
roubadas, você deve se dar conta de que voar períodos superiores a 4 horas
exige resistência de músculos no seu corpo que você provavelmente nunca se deu
conta de que existem, então, uma rotina de exercícios anaeróbicos de
resistência associados com os aeróbicos te deixa em boas condições de encarar o
Sertão. Eu procuro manter uma rotina de exercícios físicos, e nestes dias que
antecederam a viagem, foquei nas corridas de 10km.
Tudo preparado, logística resolvida,
planejamento feito, mas ainda tinha o aspecto cabeça. Em Quixadá a sua mente
pode ser o seu maior aliado ou o seu maior inimigo. Cada um tem uma forma de
lidar com os aspectos associados à mente e à espiritualidade de uma forma
geral. Particularmente, desenvolvi uma forma de meditação com base em orações e
em pensamentos positivos, buscando enxergar além do que os olhos nos mostram.
Procurava imaginar a decolagem, o voo e o pouso em Quixadá de uma forma
positiva. Imaginava o som do vento e como seria a minha decolagem na ventaca e
qual técnica usaria, é claro que sempre visualizando tudo de uma forma eficaz e
positiva. É importante também você estar psicologicamente preparado para lidar
com sensações de calor extremo, dor, cansaço e com decisões de não decolar em
situações que excedam sua capacidade técnica, por exemplo, e com o toda e
qualquer vivência que um desafio como Quixadá pode te apresentar. Um aspecto
que procurei imaginar foi sobre como seria o meu voo, e sempre ficou claro para
mim que para vencer os desafios impostos por Quixadá eu teria que estar
preparado para lidar com reações muito demandantes do parapente e que eu
deveria ser capaz de tomar decisões muito rápidas, incluindo a decisão de comandar
o paraquedas reserva se fosse necessário. Tentei estabelecer mentalmente quais
seriam os limites até onde eu tentaria controlar o velame e a partir dos quais
eu comandaria o reserva. Parece uma reflexão meio mórbida, mas penso que foi
muito positiva, pois depois destas reflexões eu me senti mais preparado como
piloto. Acredito que os limites de um piloto para acionar o reserva em termos
de tipo de panes e altitude remanescente são aspectos muito pessoais, mas é
importante que estes limites sejam ao menos que mentalmente conhecidos. A dica
é: o paraquedas reserva existe, e deve ser utilizado se necessário.
Cheguei a Quixadá na madrugada do dia 16/11/12
por volta das 04h00min, e como havia combinado com o resgate bem cedo, dormi
poucas horas e por volta das 09:00 estava chegando na rampa, já “tarde” uma vez
que as decolagens estavam ocorrendo por volta das 07:00. Inevitável a pergunta
que eu fazia a mim mesmo: ”O que estou fazendo aqui?” O vento não estava tão
forte, mas o clima daquela rampa, e ver o lugar que vi durante várias horas de
vídeos arremessando dezenas de pilotos no chão tomou conta de mim, e eu senti
um medo enorme. Eu não sabia o que fazer, por onde começar, aonde abrir o meu
equipamento. Foi aí que o meu resgate, o “Passarinho”, já foi me passando as
orientações de um resgate experiente e já foi instalando seu rádio base e seu
GPS no meu carro. Daí eu percebi onde estava e o que estava buscando lá. Fui
controlando aquele pavor da rampa que invadia a minha mente e dando lugar a uma
análise técnica do que estava acontecendo ao meu redor. Arrumei um lugar para
checar meu equipamento em meio ao chão árido e com vestígios de raízes que
insistiam e agarrar nas linhas. O calor e a secura eram extremos, e eu tinha
que enfrentar estas dificuldades se quisesse voar lá. Foi então que apareceu o
Werneck de Sampaio, que tinha chegado pela primeira vez na rampa um dia antes,
e começou a conversar comigo passando o seu relato de como ele se sentiu ao
chegar na rampa. Curioso é que ele relatava exatamente como eu estava me
sentindo naquele momento, então eu percebi como o aspecto psicológico daquela
rampa era avassalador com todos os pilotos de uma forma geral,
independentemente do seu nível técnico e experiência, então comecei a me
tranquilizar e a perceber que aquela condição não estava tão forte naquele dia
e eu tinha condições técnicas suficiente de voar. Neste dia vários pilotos
desistiram de voar, não pela condição forte, mas justamente pelo contrário, já
que existia alguma inversão térmica, não tinham nuvens, os pilotos que decolaram
não subiam, e a expectativa não era boa para Cross. Como era a minha primeira
vez, decidi voar para ter o meu primeiro contato com a rampa, mas estava bem
cansado da viagem, e sabia que não teria condições de fazer um voo longo. Após
uma verificação criteriosa de todo o equipamento, me direcionei para a rampa
com a ajuda do apoio de rampa, e aos poucos fui dando conta de que havia
chegado o momento para o qual eu tinha me preparado tanto. Parecia que eu de
alguma forma já tinha vivenciado aquilo, talvez na minha mente. Me deparei com
uma rampa extremamente inclinada, de aproximadamente uns 45 graus. Os vídeos
não são capazes de retratar como é a rampa e qual é a sensação ao descer por
uma pequena trila escorregadia ao lado. Você abre os olhos e percebe que está
na rampa mais temida do Brasil, e talvez do mundo. Você está em Quixadá. Fiz a
minha oração como de costume, pedindo permissão para fazer da natureza uma
forma de lazer e pedindo proteção na decolagem, voo e pouso. Ao final das
orações, sempre peço a Deus que remova toda a turbulência interna e que permita
que eu entre em sintonia com a natureza e assim possa me divertir. Após o meu
ritual particular, voltei as atenções para o parapente, que mesmo sob as mão de
três pessoas segurando no bordo de ataque e nas pontas, não parava de querer
entrar em voo sozinho como se tivesse vida própria. O vento era considerado
moderado para as condições locais, mas para mim, era um vento consideravelmente
forte, e que seria impiedoso comigo se eu não aplicasse a técnica perfeita na
decolagem. Então fechei os olhos, mentalizei as decolagens que havia
visualizado naquela rampa, e em meio a sinalização do Paulo Rocha que auxilia
os pilotos quanto aos ciclos de decolagem, pedi aos garotos que largassem a
vela. Não precisei fazer muita coisa a não ser correr para debaixo da vela e me
posicionar em posição de decolagem. Pronto, numa fração de segundos a vela
estava na minha cabeça, e com um leve toque nos freios já estava voando.
Procurei me afastar da rampa, e buscar alguma térmica para ficar alto. Mas é
fato que a minha condição física para o dia não estava apropriada, e eu não
teria o desempenho necessário para se voar lá. Então acabei fazendo alguns “S”
e preguei. Foi sem dúvida o prego mais importante da minha vida como piloto até
então. A condição estava realmente fraca para Cross, mas daria para fazer
alguns KMs se eu estivesse mais descansado e focado, então acredito que tenha
sido um voo importante no reconhecimento local. Já no pouso próximo a um
juremal, pude sentir toda a agressividade do clima local. Muito calor, muita
secura, vento forte para te atrapalhar na dobragem, muitas raízes e plantas
espinhosas garrando nas linhas. Estava em Quixadá!
Continua no próximo post....